“Jesus foi um grande pacifista”, declara Allan Freitas

Allan e Mellina Freitas em encontro com Henrique Vieira, na ALERJ. (10/2017)


Não há dúvida de que passamos por dias dificeis, de extrema polarização política e ideológica. Tal não é senão uma confirmação da mensagem profética de Cristo: "Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará" (Mateus 24:12). Na Europa, EUA, Filipinas e recentemente no Brasil, uma extrema-direita rancorosa e impiedosa vem protagonizando uma série de protestos contra imigrantes, pobres e minorias. Eleito com a promessa de expulsão de 11,3 milhões de imigrantes ilegais e a construção de um muro para separar os EUA do México, Donald Trump vem cumprindo pacialmente suas promessas, e com um agravante: colocou em seu governo supremacistas brancos. Quando dos episódios de violência em Charlottesviller - esta uma pacata cidade de 45 mil habitantes, localizada no sul do Estado da Virginia -, em que supremacistas brancos foram responsáveis pela morte de três manifestantes contrários ao movimento, Trump culpou ambos os lados pela tragédia, embora posteriormente tenha mudado seu discurso, em parte pela pressão de empresários e conselheiros. O fato é que o quadragésimo quinto presidente dos EUA tem sido um dos principais responsáveis pelo aprofundamento da polarização entre brancos e negros, com consequências dolorosas e dramáticas.

Na Europa, a ascensão de partidos de extrema-direita - aí inclusos partidos como Altenativa para a Alemanha, Democratas Suecos, Partido da Liberdade (Holanda), Frente Nacional (França), Partido da Liberdade da Áustria, e La Liga (Itália) - têm atuado em paralelo ao protagonizado pelo presidente Donald Trump, nos EUA, com manifestações claramente xenófobas, islamofóbicas e homofóbicas. Fora da Europa, no entanto, e mais preocupante ainda, é a atuação do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Desde que assmuiu o governo, Duterte tem comandado a morte de mais de 4 mil pessoas, dentre pequenos traficantes de drogas e usuários, além de ser machista e responder por processos de assédio sexual. Diversos órgãos internacionais, de defesa dos Direitos Humanos, têm manifestado-se contrários às políticas extremistas do presidente filipino, assim como governos e líderes progressistas. A reunião, em novembro passado, entre Trump e Duterte foi interpretada como emblemática por representar o que há de pior na política internacional, diferente do pacifismo apregoado por Barack Obama e o Papa Francisco. Por influência destes dois últimos personagens foi restabelecido um novo canal diplomático com o governo cubano, e depois de mais de 50 anos de intensos confrontos armados, entre tropas colombianas e as Forças Revolucionárias da Colômbia, foi celebrado um acordo de paz.

A ascensão de Donald Trump ao governo da maior potência militar do mundo e a recente mudança no quadro político da Colômbia e da Itália, com uma ampla maioria de parlamentares de extrema-direita eleitos aos parlamentos, representa uma grande ameaça às conquistas progressistas dos últimos anos. Uma característa comum destes e de outros países em que partidos e movimentos de extrema-direita ganham cada vez mais espaço, é a forte presença (e influência) de igrejas católicas e protestantes. No Brasil vemos algo semelhante em desenvolvimento, com a ascensão de líderes como Marco Feliciano e Jair Messias Bolsonaro. O fato de o Brasil ser um país de maioria cristã e conservador, faz com que pautas como defesa do porte de armas, punitivismo, encarceramento em massa, linchamento etc., tenham ampla aceitação. Neste sentido, fíguras como o Bolsonaro se veem em posição confortável para disputar o maior posto de comando da nação, a Presidência da República. Por mais que apele ao cristianismo, dificilmente Bolsonaro conseguirá fundamentar suas propostas nas Escrituras. Segundo Allan Freitas, "Jesus foi um grande pacifista". Carioca, casado com Mellina Freitas, psicólogo, mestrando em Psicologia Social pela UERJ e líder da Comunidade Ekklésia, Allan Freitas apresenta, na entrevista a seguir, alguns aspectos humanitários de Cristo, dentre os quais sua visão pacifista. Leia.

Somos Progressistas. Usada por cristãos de todo o mundo, a Bíblia vem sendo interpretada de diversas maneiras, de acordo com a perspectiva ideológica de cada leitor ou grupo que a tome como base de sua fé ou credo doutrinário.  Apesar de pregar o amor ao próximo e a proteção de pobres e excluídos, a Bíblia é interpretada por conservadores brasileiros e norte-americanos como fundamento para práticas de punitivismo, pena de morte, submissão da mulher ao homem e a sobrevivência do mais forte, por mais que esta última perspectiva soe darwiniana. Não é o que acreditam os autores do clássico “O Livro das Religiões” (1989:256). Segundo eles, “muitos ideais humanistas estão expressos na Bíblia, inclusive a ideia de que todas as pessoas têm igual valor (Gl 3:28)”. Para além da percepção destes autores, que outros textos nos permitem dizer que o humanismo está presente nas Escrituras?

Allan Freitas. Há de se tomar um cuidado, pois há diversos humanismos e, quando citamos humanismo em alguns círculos teológicos, observa-se certa resistência. Normalmente os teólogos que criticam severamente o humanismo o fazem com base num conceito, todavia, quando eu cito humanismo, estou me referindo a outro conceito. Muitos defendem uma oposição entre humanismo e evangelho. Esse cuidado já reduz um pouco o ruído na comunicação e poupa discussões irrelevantes. Ainda que não seja uma questão conceitual, muitos divergem de mim quando falo sobre Bíblia, Evangelho, Jesus e Humanismo. Explicarei posteriormente. Antes de ir as Escrituras, para um melhor entendimento, faz-se necessário uma breve introdução. Não há como falar de humanismo sem falar de história, filosofia e política. Houve um tempo, na filosofia antiga, em que os pensadores se atinham a questões da physis, os pré-socráticos, portanto estavam voltados para questões da natureza e o surgimento das coisas. Mais adiante vemos os sofistas introduzindo o relativismo e a importância da retórica. Daí a origem da palavra sofisma, encontrada nas Escrituras, como por exemplo em 1 Coríntios 10.4. Um sofisma significa uma inverdade ou uma meia verdade. Os sofistas não acreditavam na verdade absoluta e faziam brincadeiras e disputas entre si para ver quem tinha a argumentação mais convincente sobre determinado assunto. Sócrates, Platão e Aristóteles destacam-se neste período.

Em um dado momento da história, por uma confluência de fatores, constata-se Atenas como uma cidade organizada, grande polo comercial, intelectual e cultural.  Isso se dá por volta de 490 a.C. e 431 a.C. Nesse período já se falava em democracia, em sociedade civil organizada e outros termos que estamos acostumados. Conseguintemente se percebe que a filosofia toma o lugar da mitologia. Um mito é uma espécie de explicação para aquilo que não sabemos explicar. Logo, a filosofia deixa de se debruçar sobre a temática da physis e passa a pensar o homem, sua relação com o outro, a sociedade, a cidade e o Estado. As explicações não giram mais no em torno do divino ou dos deuses, mas do homem. O homem é responsável por si. Daí a grande guinada. O Teocentrismo (Deus/deuses no centro), é deixado dele, e passa a vigorar o Teocentrismo (homem no centro). A máxima frase, e que representa o espírito do Humanismo é delineada por Pitágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. Esse contexto proporciona o desenvolvimento da estética, das artes, da política, da educação, da retórica.

O pensamento humanista ou a cultura humanista, atravessa séculos: Idade Média, Renascimento, Iluminismo, modernidade e pós-modernidade. Nesse sentido, identifica-se diversas versões de humanismo, dentre elas o humanismo cristão. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, por exemplo, escreve um livro chamado “O existencialismo é um humanismo” para explicar que o seu existencialismo não pode ser considerado um humanismo de modo geral, mas que é sim, um determinado tipo de humanismo. Na Psicologia, o humanismo ganhara força na década de 60. A psicologia humanista é considerada a terceira força da psicologia e surge no contexto de forte contestação, concomitante a eclosão do movimento feminista e movimento hippie. Afirmo categoricamente que o humanismo está contido nas páginas das Escrituras e, sobretudo, mais expressamente, na essência do Evangelho de Jesus. Toda vez que a pessoa humana (permita a redundância), a vida humana e a dignidade humana é colocada como prioridade, na frente dos preceitos religiosos, liturgia e tradições, há humanismo. Vide as passagens bíblicas de I Samuel 21:2-6; Joel 2:28 Marcos 2:25-27 e João 8:3-8 e tire suas próprias conclusões sobre o que discutismos acima.

Somos Progressistas. Não há dúvida de que Jesus é o maior personagem da história, e que há mais de dois mil anos vêm sendo interpretado de diversas maneiras. Jesus vem sendo usado por escritores norte-americanos como fundamento para inúmeras teses, sendo descrito como o “maior administrador e psicólogo que já existiu”, dentre outras classificações. Por meio destes livros Jesus têm sido esmiuçado, estudado em grupos de leitura. Em seu artigo, “Jesus, o maior humanista de todos os tempos”, você apresenta alguns aspectos humanistas de Jesus, dentre os quais o relato de que Jesus quebrou a lei do sábado para alimentar seus discípulos. Em que este texto de Marcos 2:25-27 contribuí para o entendimento de que Jesus foi “o maior humanista de todos os tempos”? Ainda: que outras mensagens – e ações – de Jesus podemos tomar como fundamento para esta visão progressista?

Allan Freitas. Jesus quebra todos os protocolos, todos os paradigmas, ele rompe com a tradição. Toda vez que a tradição passa a ter mais importância que a pessoa ela precisa ser repensada. Jesus fazia isso o tempo todo. Sua prioridade estava em preservar a pessoa, em promover a dignidade humana, seja do publicano Zaqueu, do paralitico do tanque de Betesda, do cego de Jericó, da prostitua, da mulher Samaritana ou da mulher “adúltera”. Jesus não desprezava ninguém, pelo contrário, colocava como prioridade os excluídos, esquecidos, rejeitados, segregados e marginalizados. Todo aquele que é oprimido por uma sociedade desigual é prioridade para Jesus. Chego a dizer que Jesus age com equidade. Equidade é um dos princípios norteadores de uma série de políticas públicas no Brasil, por exemplo. Consiste em tratar de maneira diferente o diferente. Se eu tenho algo guardado em um armário que fica no alto de uma sala e tenho duas pessoas com estaturas distintas, eu preciso verificar como ambas podem acessar o armário. Sendo assim, uma por ser mais alta consegue com facilidade tirar e colocar coisas no armário, a outra, só com o seu tamanho não consegue. Então eu forneço uma escada ou uma banqueta com dois degraus para que a pessoa com menor estatura possa acessar o armário. Pronto, agora os dois tem condições de acessar o armário. Tal é o significado de equidade.

Há quem diga que fé não tem nada a ver com sentimentos. Ao ler os Evangelhos cuidadosamente você irá perceber que todos os milagres de Jesus tinham uma motivação extremamente humana. Ele curava, libertava e operava milagres e maravilhas “movido de íntima compaixão”, porque se “compadecia” ou sentia “misericórdia” pelas pessoas que sofriam. A Bíblia diz que “Jesus chorou” (João 11. 35) ao ver a morte seu amigo Lázaro. Gosto muito da passagem que fala da multiplicação dos pães e peixes, ela reforça o que estou explicitando e ajuda a responder a pergunta: “E Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor; e começou a ensinar-lhes muitas coisas.” (Marcos 6.34) Mais adiante Jesus ordena aos discípulos que alimentem a multidão. Jesus estava preocupado não só com a necessidade espiritual das pessoas que o ouviam, mas com o bem-estar comum, com as necessidades básicas daquelas pessoas, que contabilizavam no mínimo 15 mil. Os discípulos não entenderam a ordem de Jesus. Logo, aparece um menino disposto a contribuir com o seu lanchinho, 5 pães e depois peixes. Então, Jesus começa a distribuir entre os discípulos e ordena que repartam com a multidão. Talvez seja difícil falar em partilha num período em que os próprios cristãos pregam prosperidade a todo custo, como sendo prova das bênçãos de Deus.

A ideologia capitalista invadiu muitas igrejas de uma forma que corrompeu o evangelho que nelas é pregado. Prega-se acumulo de riquezas, concentração de renda, ter em detrimento do ser. Um “evangelho” materialista, capitalista, mercadológico, individualista, egoísta, hedonista e fétido. Um “evangelho” no qual você aprende a negociar com Deus, fazer barganhas, dá para receber. Enfim, Jesus vai justamente no caminho oposto. Se existe uma matemática no Reino de Deus essa consiste na seguinte equação. Deus nos dá, nós repartimos e Ele multiplica. Se Ele multiplica é para que eu tenha mais ainda para repartir. Toda bênção que Deus me concede não tem um fim em mim, mas visa abençoar outros. Fico vendo as pessoas dizendo que igreja não é obra social, que evangelho não tem nada a ver com caridade, que devemos pregar o evangelho somente. Mas o que significa isso? Pregar o evangelho somente? O evangelho é integral, compreende o ser humano em sua totalidade. Pregam por aí um evangelho Gasparzinho, que se preocupa somente com a alma das pessoas. Não importa a dificuldade que a pessoa esteja passando, o importante é que ela vai para céu. Aqui ela sofre mesmo e eu não posso fazer nada para ajudar, se ela passa fome, se ela não tem o que vestir, eu cruzo os braços. Que absurdo! “Se alguém possuir recursos materiais e, observando seu irmão passando necessidade, não se compadecer dele, como é possível permanecer nele o amor de Deus?” (1 João 3.17) O próprio Jesus diz que o objetivo de nossas vidas não deve ser acumular riquezas, e sim ter vida eterna (Lucas 12.15). Ao multiplicar os pães e peixes e alimentar a multidão ele deixa um recadoclaro paras eus discípulos. Os mais necessitados são prioridade, vocês devem agir em prol deles. (Mateus 25. 35-40).

A Igreja deveria ser a grande locomotiva da história, promovendo avanços em todos os âmbitos. Deveria estar envolvida nas lutas dos movimentos sociais, no movimento de direitos humanos, em defesa do direito das pessoas com deficiências, em defesa do direito das mulheres, contra o racismo e todo tipo de preconceito, fazendo ciência, produzindo tecnologia e promovendo novas descobertas, em meio as discussões de ecologia e sustentabilidade e muito mais. Tenho visto muito pouco ou quase nada de participação da Igreja nessas causas. Afirmo sem medo de errar que Jesus foi o maior ativista dos direitos humanos e que se estivesse hoje em nosso meio certamente lutaria por essa causa.

Somos Progressistas. Há algumas semanas, nos Estados Unidos, ocorreu mais um triste episódio de chacina de pessoas inocentes.  Na data em que era comemorado o Dia de São Valentin – Dia dos Namorados, nos EUA -, o ex-aluno da escola de ensino médio Marjory Stoneman Douglas em Parkland, cidade 80 km ao norte de Miami, Nikolas Cruz, 19 anos, e que tinha sido expulso da escola por questões disciplinares, invadiu a unidade munido de um fuzil AR-15, resultando na morte de 17 estudantes, dentre feridos e machucados. O fato de os Estados Unidos ser um país de maioria evangélica em nada tem contribuído para a proteção de crianças e adolescentes, principais vítimas dos atentados cometidos por terroristas caseiros. Como conciliar a visão belicista dos evangélicos americanos com a mensagem de pacifismo, pregada por Jesus em Mateus 5:9? Como exemplo de humanista, o Senhor Jesus era favorável ao porte de armas? Que dizer da passagem de Lucas 22:36?

Allan Freitas. Não há como conciliar. Jesus foi um grande pacifista. Talvez essa fosse a grande decepção dos judeus e dos radicais de sua época. Esperavam que Jesus fosse um grande governador, um líder militar que conduziria a libertação do povo de Israel que estava sob domínio do Império Romano. Quando acontece a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, era essa expectativa que pairava, o grande libertador, aquele que iria defender os interesses dos judeus a todo custo. Sabemos que a libertação que Jesus propunha era outra e que se daria por outra via. Menciono duas situações pertinentes ao debate: Primeiro: O que Jesus fala para o discípulo que cortou a orelha do soldado Malco: “Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão! Ou imaginas tu que Eu, neste momento, não poderia orar ao meu Pai e Ele colocaria à minha disposição mais de doze legiões de anjos?” (Mateus 26. 52-53); Segundo: O que Jesus diz aos discípulos que foram a uma aldeia samaritana encontrar pousada, mas que não foram recebidos: “E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez? Voltando-se, porém, repreendeu-os, e disse: Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las.” (Lucas 9. 54-56).

Não posso responder por Jesus, mas acredito que no mínimo ele problematizaria a questão e não se posicionaria a favor, pois a maior arma que os discípulos de Jesus devem portar é o amor. Pensando na questão do pacifismo, também me inspiro em histórias como as de Gandhi, Luther King e Mandela. Eis alguns exemplos de líderes pacifistas, de legados que não se constroem usando armas de destruição.

Somos Progressistas. Com predominância religiosa diferente dos EUA, as Filipinas são governadas por um dos maiores inimigos dos direitos humanos: Rodrigo Duterte. Além do fato de ser um dos países asiáticos com maior número de católicos, as Filipinas também têm como estatística o grande número de pessoas que vivem em estado de extrema pobreza, muitas das quais sobrevivem revirando lixões. Uma reportagem publicada em 2017, pela Gazeta do Povo, revelou uma situação ainda mais desesperadora: “Cemitério serve de moradia para pessoas em Manila”. As Filipinas são exemplos de que a extrema pobreza pode desencadear em crise social, com o aumento da violência e tráfico de drogas. Desde que assumiu a presidência, Duterte tem ordenado a morte de traficantes e usuários. Cerca de 4.000 mil pessoas já foram mortas pelo regime. Em algum momento, em seu ministério terreno, Jesus pregou a favor da política conservadora de que “bandido bom é bandido morto”?

Allan Freitas. Não dá para conceber o fato de que uma pessoa que se diz cristã e, ao mesmo tempo, é defensora da máxima que diz que “bandido bom é bandido morto”. Jesus foi cruscificado como um bandido, mas era inocente. Quando eu digo que uma pessoa merece a morte, estou dizendo que ela é irrecuperável, que o amor de Deus não pode alcançar e transformar essa vida. Dizer que alguém deve morrer é o mesmo que se colocar no lugar de Deus e legislar sobre a vida e a morte. Quando digo que um bandido deve morrer estou dizendo que sou melhor do que ele, que ele não merece uma segunda chance. Na verdade, sabemos que todos somos iguais, não há diferença de um bandido para mim. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23) A graça de Deus nos nivela. O Cristo que eu conheço abriu as portas do paraíso para um bandido que foi crucificado ao seu lado. Não sei como conseguem conciliar esse pensamento bárbaro com o amor incondicional de Deus e com a sua graça.

Somos Progressistas. Em um artigo publicado recentemente na DW, José Ospina-Valencia declara que “o poder crescente de seitas evangélicas e partidos políticos moralizantes estão colocando as democracias da América Latina à prova”. O foco da preocupação do autor está no Brasil, Colômbia, México, Peru, Costa Rica, República Dominicana e Venezuela. Ex-candidato à presidente da Costa Rica, o comediante evangélico Fabrício Alvarado recebeu inúmeras críticas e reprimendas da Corte Interamericana de Direitos Humanos por suas falas contra homossexuais. Um caso em particular, relatado por Valencia, desperta a atenção por envolver uma comunidade evangélica de Bogotá. Fundadora da Igreja de Deus Ministerial de Jesus Cristo, Maria Piraquive chamou a atenção por proíbir que pessoas com deficiência preguem a Palavra de Deus. Proibir que pessoas com algum tipo de deficiência façam uso do púlpito não vai contra a mensagem humanista de Cristo, de inclusão social?

Allan Freitas. Certamente. Talvez seja uma má interpretação do que está escrito no Antigo Testamento, mais especificamente no Pentateuco. Lá fala que o sacerdote não poderia ter nenhum tipo de deficiência. Mas isso era uma questão da época, pois o sacerdote tinha a responsabilidade de carregar os sacrifícios, e o ofício sacerdotal exigia muito. Havia toda uma rigidez típica da liturgia, tradição e teologia judaica. O evangelho de Jesus afirma que todos somos sacerdotes. O pacto da Nova Aliança permite a todos o acesso a Deus; não há mais necessidade de intermediários. Um dos pilares da Reforma Protestante é o sacerdócio universal. Jesus sempre se colocou ao lado das minorias. É justamente a tradição cristã que historicamente revoluciona o trato com a pessoa com deficiência. Jesus acaba com o estigma de que uma pessoa com deficiência é uma pessoa amaldiçoada, pecador ou vítima do pecado dos pais. “E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.” (João 9:1-3). O mundo tem hoje um grande palestrante motivacional, conferencista e evangelista chamado Nick Vujicic. Quem já assistiu suas palestras, viu um de seus vídeos ou o viu pela televisão sabe que ele não tem braços nem pernas. É um cara fenomenal e tem impactado milhares de pessoas, inclusive a mim. Ele vivia uma vida sem propósito até se deparar com o texto que mencionei.

Somos Progressistas. A maneira como o presidente Donald Trump – e no Brasil temos o exemplo machista do presidenciável Jair Bolsonaro – se refere ao gênero feminino, tem sido motivo de preocupação por órgãos de defesa dos direitos humanos. Além de machista, Trump também foi alvo de denúncias de assédio sexual contra 13 mulheres. Não é um caso isolado, porém. No Brasil, o presidenciável Ciro Gomes teria dito, na campanha de 2002, que a única função de sua esposa, Patrícia Pillar, na campanha estava no fato de ela “dormir com ele”. Recentemente, ao falar sobre a pré-candidatura presidencial de Marina Silva, Ciro Gomes teria dito que o “momento é de testosterona”. Luciana Genro publicou um vídeo em repúdio a declaração. Como um candidato que diz representar o campo progressista usa tamanha agressividade contra uma mulher? Em que Jesus era diferente?

Allan Freitas. Jesus empoderou as mulheres. Eram as mulheres que sustentavam o ministério de Jesus. Veja como ele trata a “mulher adúltera”, veja como ele quebra todos os paradigmas e se aproxima da mulher samaritana. Jesus diz que é o Cristo para a mulher Samaritana logo após ter tido uma conversa com um grande doutor chamado Nicodemos. Para Nicodemos Jesus não foi nada claro,  mas para a mulher samaritana o foi. Deus confiou a uma mulher a tarefa de gerar e cuidar de seu filho. Jesus deixa bem claro que a mulher não é inferior ao homem. Paulo reafirma isso quando diz: “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Gálatas 3.28)

Somos Progressistas. O mundo passa por um período de grande crise social, com milhares de pessoas deixando países em guerra, ou mesmo fugindo da fome que assola diversas nações. Partindo do litoral da Líbia e da Síria, milhares de pessoas – incluídas mulheres e crianças – estão enfrentando duras condições de sobrevivência ao atravessar o Mar Mediterrâneo, não sendo raro os casos de morte por afogamento devido a superlotação de embarcações. O corpo de uma criança encontrado em uma praia da Turquia chocou o mundo e motivou um maior aprofundamento nas discussões sobre a crise dos refugiados. Nos EUA, Donald Trump foi eleito com a promessa de expulsar mais de 11,3 milhões de imigrantes ilegais, e na Europa partidos de extrema-direita têm colocado a população contra os milhares de imigrantes que todos os dias entram no continente. Como a Bíblia se refere aos imigrantes e aos refugiados? Há nas Escrituras qualquer incentivo ao ódio contra imigrantes e refugiados?

Allan Freitas. A Bíblia aborda a questão do estrangeiro em diversas passagens, e fala de como este deve ser cuidado, protegido e abrigado. É nítida essa preocupação. Por diversas vezes o povo de Israel foi forasteiro. Muitos personagens bíblicos viveram a experiência de serem refugiados, e Jesus foi um. Um dos temas caros no Novo Testamento é a hospitalidade. Veja: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos” (Hebreus 13.2). “Sede hospitaleiros uns para com os outros, sem vos queixar” (1 Pedro 4.9). Repare como a questão dos imigrantes e refugiados é tratada em textos do Antigo Testamento, como Êxodo 23:9; Levítico 19:33; 25:9-10 e Deuteronômio 10:18-19. Em suma: não há base para o ódio, de nenhuma espécie e seja qual for a sua motivação.

Somos Progressistas. O extremismo religioso tem sido descrito por especialistas como um dos grandes males da sociedade, um mal que assola não somente países teocráticos, de imposição religiosa, mas também nações com formação cristã e democrática. No Brasil, uma direita rancorosa tem impetrado diversos ataques contra líderes e projetos progressistas. Casos de violência contra adeptos de religiões de possessão, no Rio de Janeiro, são mais do que sintomáticos deste período de grande oposição religiosa. Grupos evangélicos e católicos avançam cada vez mais na esfera pública, com projetos como o Escola sem Partido e oposição a política de igualdade ou ideologia de gênero. Ao mesmo tempo em que se colocam contra políticas progressistas, de inclusão das minorias, os grupos conservadores defendem o fim do Estatuto do Desarmamento e o endurecimento do Código Penal. Em uma passagem dos Evangelhos, Tiago e João sugeriram que Cristo aniquilasse os samaritanos com fogo. Como Jesus reagiu à manifestação de extremismo dos seus discípulos e o que Ele ensinou sobre a tolerância?

Allan Freitas. Anteriormente comentamos algo sobre o assunto, mas gostaria de falar um pouco mais sobre o tema intolerância. Minha pesquisa de mestrado versa sobre a relação entre neopentecostais e religiões africanas. Trabalho a temática da intolerância religiosa. O estado do Rio de Janeiro, onde vivo, e que é o berço do neopentecostalismo no Brasil e o berço da Umbanda, é o estado mais intolerante do Brasil. Recentemente temos visto inúmeros casos de violência e depredação contra terreiros e tudo que está ligado as religiões de matriz africana. Entretanto, acredito que tolerância não seja o melhor termo. Quando falamos de tolerância falamos de uma relação assimétrica. Tolerar parte do princípio de que eu sou melhor e superior ao outro e, que por isso, eu o tolero. Na verdade precisamos estar um patamar acima. Precisamos de relações mais simétricas, onde haja respeito, igualdade e diálogo. Isso não só para a questão da relação entre diferentes religiões, mas na relação entre os diferente gêneros, etnias e classes. No sermão do monte vemos Jesus ensinando como quebrar um ciclo de ódio. (Mateus 5. 38-41). Certa vez o líder Mahatma Gandhi declarou que "só não era cristão por causa dos cristãos", e que “podem queimar todos os livros, se deixarem o sermão da montanha a humanidade estará salva”.

Somos Progressistas. Outra polêmica recorrente no universo evangélico brasileiro é a relação deste com os homossexuais. Embora declarem “amar os homossexuais, mas abominar o pecado” (homossexualismo), na prática muitos evangélicos desenvolvem uma atitude preconceituosa e discriminatória. Pastores como Silas Malafaia e Marco Feliciano são algumas das lideranças que têm instigado a população evangélica contra o movimento LGBTI, ao invés de propor um debate sadio e democrático. No ambiente acadêmico e jurídico também não tem sido diferente. Investidas de juristas evangélicos têm dificultado o avanço de pautas progressistas.  Idem a atuação de psicólogos evangélicos, como é o caso das psicólogas Marisa Lobo e Rosângela Alves Justino. Defensoras da “cura gay”, as referidas psicólogas têm ampliado seu raio de influência ideológica, no legislativo federal e nos estados. Como psicólogo e defensor do humanismo, qual é sua análise da teoria da “cura gay”?

Allan Freitas. Bom, há alguns anos atrás descobri a figura da Marisa Lobo, bem antes dela cair na polêmica e ter o seu nome ventilado na mídia. Ela já estava utilizando o termo psicologia cristã, inclusive era esse o nome de seu site e de seus perfis em redes sociais. Ela trabalhava com dependência química, defendendo a corrente proibicionista. Nesse período ela lançou um livro chamado Psicopatas da Fé, que chamou minha atenção. Mas não demorou muito tempo para que ela começasse a andar com um psicopata da fé, o Marco Feliciano, e depois com Silas Malafaia. Posteriormente começou a questão da mistura que ela fazia entre psicologia e religião. Abriu-se um processo no Conselho Federal de Psicologia contra ela. Feitas essas alianças, Marisa passou a defender a tal “cura gay” e aproveitou toda a polêmica em torno do seu nome para se lançar como candidata ao cargo de deputada federal.

A teoria da cura gay é infundada, não tem base, e é apenas um argumento de um grupo religioso que visa ganhar espaço na política partidária. A estratégia é mais ou menos assim: eles inventam argumentos para criar terror e pânico entre os evangélicos, tais como: a Bíblia vai ser proibida e os pastores serão obrigados a fazer casamento gay.  É natural que as pessoas se assustem. Na sequência apresentam uma solução mágica. “Para impedir que tudo isso aconteça e para defender a família tradicional, você precisa votar no ciclano”. Então apontam o candidato deles e influenciam as pessoas no sentido de votarem nele, para impedir que os absurdos falados anteriormente aconteçam.
Eu acompanhei a última polêmica envolvendo a “cura gay”. Olhei as resoluções do Conselho Federal de Psicologia e o projeto de lei, que é de autoria do deputado Pastor Eurico, integrante da bancada evangélica no Congresso. O texto utiliza como base de argumentos do “grande pensador brasileiro” Olavo de Carvalho. Não preciso falar mais nada. Você já sabe o que vem por aí. Vala salientar que o código de ética do psicólogo visa a promoção da dignidade humana e está pautado nos princípios norteadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A título de curiosidade, vale conferir a Resolução CFP  n° 001/99, de 22 de março de 1999, e que foi elaborada pela renomada professora de Psicologia Ana Bock. É essa resolução que os defensores da cura gay atacam e argumentam que é uma resolução inconstitucional e que oprime os psicólogos. Trata-se de uma resolução clara e coerente.

Somos Progressistas. Em seu artigo você faz um breve apanhado histórico do humanismo, e sua característica enquanto proposta de valorização do homem, de desenvolvimento das potencialidades latentes e inerentes à pessoa humana. Ao mesmo tempo, declara que o humanismo está presente na sociedade ocidental, e que a educação, a política, a ética e a retórica são heranças do humanismo. Biblicamente, você menciona a percepção de alguns cristãos de que o humanismo é incompatível com a fé em Deus”, uma vez que esta linha de pensamento “rompe com o teocentrismo (deus no centro) e estabelece o antropocentrismo (homem no centro). A ideia de que o humanismo é uma contribuição ocidental não destoa do fato de que Jesus era judeu, e que, portanto, era oriental? Por favor, pontue. 

Allan Freitas. Não, pois historicamente o fenômeno do helenismo já impactava a cultura judaica, mesmo dois ou três séculos antes de Cristo. Ainda que fossem eventos completamente distintos, o humanismo e a passagem de Cristo pela terra, há uma conexão. Ao longo da minha caminhada tenho aprendido que a religião, no decorrer dos séculos, tem procurado atingir a divindade sacrificando a humanidade, como se para se tornar alguém espiritual fosse necessário abdicar de sua humanidade. Uma herança gnóstica talvez. Deus fez o processo completamente inverso. Como diz Leonardo Boff: “Todo menino quer ser homem. Todo homem quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino”. Como escreveu Paulo: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens” (Filipenses 2.5-7). Cristo é o nosso referencial de homem. Nesse sentido, quanto mais humano, mais divino. A imagem de Deus é o homem. Para ser breve, pensemos na relação entre as passagens de Gênesis 1:26; Colossenses 2:9 e I Timóteo 2:5. O que todos nós temos em comum? Somos humanos. Homem vem de húmus, que significa barro, pó, chão. Do maior ao menor, do mais importante ao menos importante, em qualquer escala, não importa, todos partilhamos da mesma condição, a humana. Somos todos iguais, húmus

Finalizo com uma das impactantes frases registradas no livro "A humanidade de Jesus" (Ed. Vozes), de José M. Castilho: “Só é possível alcançar a plenitude do divino à medida que nos empenhamos em conseguir a plenitude do humano [...] Nos tornamos mais divinos à medida que nos fazemos mais humanos” (p. 10). Aconselho a leitura da obra de Castilho até como forma de ampliação da entrevista. 

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