"Durante a ditadura grupos evangélicos progressistas foram duramente reprimidos", declara Magali do Nascimento Cunha


No dia 31 de agosto de 2016 a primeira mulher eleita presidenta do Brasil foi substituída no Poder por um colegiado de parlamentares liderados pelo paulista descendente de libaneses, Michel Elias Temer Lulia. Era o fim de um ciclo de 14 anos de governos petistas e o início de um aprofundamento na crise política e social que vinha se desenhando desde a reeleição de Dilma Vana Rousseff, em outubro de 2014. Na verdade, é com a eleição do torneiro mecânico, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, que antigas rusgas entre conservadores e progressistas passam a assumir uma nova reconfiguração, agora baseada nas mídias sociais. A presença de um operário e de uma ex-combatente da ditadura civil-militar no Poder despertou o surgimento de uma nova direita, apoiada em líderes religiosos e ciberativistas. Políticas de inclusão de mulheres, negros, indígenas, homossexuais etc.,  passaram a ser foco do descontentamento de uma classe média rancorosa. Teve início um novo período de enfrentamentos.

Tais enfrentamentos tornaram-se ainda mais explícitos durante o processo de impeachement de Dilma Rousseff, quando movimentos direitistas deixaram o ambiente virtual para ocupar as grandes vias e logradouros do Brasil. É com base nas mídias sociais que tais movimentos ganham força e alcance, e isto dentro de um processo que a doutora em Ciências da Comunicação e colaboradora no Conselho Mundial de Igrejas Magali do Nascimento Cunha chama de "neoconservadorismo". Há aí um diferencial com relação ao conservadorismo anterior a 2002. Cunha menciona a relação de líderes religiosos com o mercado financeiro e as tecnologias de comunicação em massa, como elementos centrais para o entendimento da configuração deste novo conservadorismo. Na entrevista a seguir conversaremos sobre estes e outros temas com a doutora Magali que, além de coordenar o grupo de pesquisa Mídia, Religião e Cultura, é autora do livro "Do Púlpito às Mídias Sociais". Leia a entrevista.

Somos Progressistas. No artigo “Religião e Política: ressonância do neoconservadorismo evangélico nas mídias sociais”, a senhora menciona o surgimento de um novo conservadorismo – o neoconservadorismo – como consequência do levante de grupos contrários às políticas progressistas. Em que este neoconservadorismo se diferencia do conservadorismo que predominou no país até 2002?

Magali do Nascimento Cunha. Este "neo" deve-se ao fato de que os portadores dos discursos e das práticas se apresentam como adaptados aos novos tempos, da religião integrada ao mercado, às mídias e as novas tecnologias, oferecendo, no entanto, conteúdo conservador, que representa até mesmo propostas de retrocessos em dinâmicas sociais. São lideranças evangélicas que se apresentam como pertencentes aos novos tempos, em que a religião tem como aliados o mercado e as tecnologias, mas que se revelam defensoras de posturas de um conservadorismo explicito. Entre as lideranças podemos citar o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, o pastor do Ministério Tempo do Avivamento, deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), a cantora da Igreja Batista da Lagoinha, Ana Paula Valadão, e novas celebridades emergem como a advogada assessora da Frente Parlamentar Evangélica Damares Alves e a pastora-missionária Sarah Sheeva. Além da visibilidade midiática que as transforma em autoridades/referências religiosas que ultrapassam até mesmo os arraiais evangélicos. Essas lideranças têm em comum discursos conservadores do ponto de vista da dinâmica social.

Somos Progressistas. A senhora também menciona uma pesquisa eleitoral realizada pelo Datafolha em 2013. Há dois contrastes interessantes decorrentes da pesquisa: do total de pessoas ouvidas, 38% foram classificadas como de centro-direita e 11% de direita. Paralelamente, 26% foram classificadas como de centro-esquerda e apenas 4% de esquerda. Podemos notar uma dificuldade de identificação?

Magali do Nascimento Cunha. Em geral há uma rejeição ao binarismo esquerda-direita, o que se intensificou ainda mais após a pesquisa, a partir das eleições de 2014. A tendência parece ser de busca de um equilíbrio, de se ter o direito de transitar ou de se identificar com aspectos de uma e de outra posição política. Não é à toa que as últimas discussões em torno de candidaturas à presidência da República, apoiadas pelas grandes mídias, apontam para uma opção por políticos de centro.

Somos Progressistas. A senhora aponta o deputado Jair Bolsonaro como uma das figuras que apropriou-se do conservadorismo da população e especialmente de parlamentares evangélicos. Em 2013, na CDHM, Bolsonaro fez elogios ao Feliciano e mencionou “àquele peso nas costas”. Por “àquele peso nas costas” Bolsonaro refere-se a inexistência de parlamentares identificados com à direita?

Magali do Nascimento Cunha. Naquele momento ainda não havia uma explicitação tão intensa, de grupos alinhados com o conservadorismo e com a direita política, dentro e fora dos arraiais evangélicos. A partir de 2014 estes grupos se fortaleceram e tiveram um peso maior no impeachment de Dilma Rousseff e nos rumos das eleições municipais de 2016. Hoje há mais parlamentares que se declaram conservadores e de direita por encontrarem um clima social que permite esta explicitação.

Somos Progressistas. A Bancada Evangélica começa a se desenvolver a partir da Constituinte de 1986, ano em que a máxima “crente não se mete na política” é abandonada após a eleição de 32 parlamentares evangélicos. Juntamente com outros 480 deputados, a Bancada Evangélica participou da formulação da Constituição de 1988. Os parlamentares evangélicos deram apoio à Constituição?

Magali do Nascimento Cunha. No geral, não. O interesse maior da grande parte da bancada estava nos obstáculos a avanços no que dizia respeito aos direitos sexuais e reprodutivos e nas conquistas de concessões de rádio e TV. Havia ainda um alinhamento com a bancada ruralista, no embarreiramento das propostas de reforma agrária. O balanço final foi um grande fisiologismo da bancada, com trocas de favores, em especial, com o governo federal (José Sarney) e seus interesses na nova constituinte.

Somos Progressistas. Primeira denominação pentecostal a eleger um parlamentar, em 1961, atualmente a Igreja O Brasil Para Cristo possui apenas uma representação em Brasília, o deputado Roberto de Lucena. A despeito da baixa representação, a OBPC permitiu a entrada de pentecostais na política, sendo as Assembleias de Deus as que têm maior representação no cenário político nacional, seguida pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). As recentes mudanças de orientação da IURD com relação ao aborto e aos homossexuais pode ocasionar uma divisão na Bancada Evangélica?

Magali do Nascimento Cunha. A primeira denominação evangélica a eleger um deputado federal foi a Igreja Metodista. O pastor Guaracy Silveira foi eleito deputado para a Constituinte de 1934. Os pentecostais entraram na política décadas depois. A bancada evangélica nunca foi homogênea. A cisão está lá desde sempre porque acompanha as competições que existem entre as igrejas no campo religioso. Os deputados que representam a IURD mantêm as mesmas posições de fechamento aos direitos sexuais assumidas por seus colegas de outras igrejas. Neste ponto há uma quase unanimidade.

Somos Progressistas. Além da IURD, também compõem a Bancada Evangélica políticos ligados ao Protestantismo Histórico – batistas, presbiterianos, luterano – e uma petista, Benedita da Silva. Paralelamente, lideranças do PSC passaram a defender pautas progressistas, como maior participação da mulher na política, diálogo ecumênico e respeito à diversidade. A filiação de Nega Furacão, adepta da Umbanda, abriu um racha no Partido. A presença de parlamentares ligados a igrejas históricas e uma possível recomposição do PSC também poderá refletir na Bancada Evangélica? Qual é sua análise?

Magali do Nascimento Cunha. As duas forças religiosas da Bancada Evangélica são a IURD e a Assembleia de Deus. São as igrejas que têm projeto político como igrejas. As demais denominações estão lá por conta de projetos pessoais de seus deputados mas eles não representam os grupos religiosos a que estão vinculados. São muito autônomos. Há vários exemplos como o do deputado Áureo (SD), que é ligado à Igreja Metodista e têm tido alta rejeição dos membros da igreja pelas posturas que têm assumido em apoio a projetos de retirada de direitos sociais e na sustentação do presidente Temer no poder. Com outros parlamentares de igrejas históricas não é diferente. O caso do PSC é bem diferente do PRB ligado à IURD. O PSC sempre foi um partido conhecido como “de aluguel”, com todo tipo de candidatura. Para concorrer no campo político, as Assembleias de Deus, precisando de um partido, o ocuparam mas sabedoras das características que moldam o PSC. Tanto é que as Assembleias de Deus trabalham para criar o seu próprio partido e deixar o Partido Social Cristão.

Somos Progressistas. Além de uma propensão conservadora de boa parte da população brasileira, em seu artigo a senhora pontua que, na última década, tradicionais empresas de mídia brasileiras – a exemplo da Rede Globo de Televisão e a revista Veja – contribuíram com o discurso do ideário da moral cristã. Recentemente os referidos veículos de comunicação vêm passando por uma reconfiguração editorial, com abertura para programas e publicações de textos progressistas. Que dizer à respeito?

Magali do Nascimento Cunha. Empresas de mídia são empresas de mercado. Do ponto de vista político, os referidos permanecem fiéis ao traço conservador e aos compromissos com os grupos hegemônicos do país. Do ponto de vista cultural, precisam acompanhar as tendências de mercado que se abrem às novas demandas pautadas por grupos os mais diversos, em especial os movimentos feministas e LGBTI. Estas mídias, no entanto, abrem-se às novas demandas mas não deixam de garantir o espaço aos valores tradicionais para não perder o público cativo. É uma abertura relativa.

Somos Progressistas. Embora nos governos petistas de Lula e Dilma tenhamos presenciado avanços no campo progressista, com a criação de pastas dedicadas às políticas de igualdade racial e de gênero, por outro não ousaram tocar em temas mais complexos, como taxação das grandes fortunas, legalização das drogas e aborto. Por que, apesar de progressistas, não pautaram estas e outras pautas?

Magali do Nascimento Cunha. Os avanços foram lentos por conta dos séculos em que os valores conservadores estiveram arraigados à política. Seria preciso mais tempo. Não é à toa que todo o processo de impeachment representa um movimento reacionário para conter avanços e retomar pautas que haviam ficado no passado. Por certo os governos do PT, baseados em alianças para se sustentarem no poder, tiveram que abrir mão ou negociar projetos. Uma estratégia que se revelou equivocada pois foram alçados do poder pelos grupos com os quais se aliançaram de forma muito ágil.

Somos Progressistas. Em um artigo publicado na CartaCapital em julho de 2016, Marsilea Gombaia declarou que “a direita está mais mobilizada que a esquerda nas redes sociais”. Pós-impedimento da presidenta Dilma Rousseff percebe-se um gradual enfraquecimento e esvaziamento de páginas como Movimento Brasil Livre (MBL), Revoltados Online e Vem Pra Rua – destas três apenas o MBL mantém relativa atuação por meio de novas pautas. Apesar do esvaziamento, a direita continua atuante na rede?

Magali do Nascimento Cunha. Continua atuante. O que mudou foi a pauta. Não cabe mais a defesa da guerra contra a corrupção se os políticos que tomaram o poder, apoiados pelos grupos de direita, e afundados até o pescoço em práticas criminosas. A atuação da direita se dá agora não na conquista de cabeças, mas na conquista de almas, tocando em temas da defesa da moralidade sexual e da família, que são caros a uma parcela conservadora da sociedade. Vide as mobilizações contra a mostra “Quermuseu”, patrocinado pelo Santander, e contra a presença da filósofa Judith Butler no Brasil. A mobilização e a eficácia na ocupação das mídias sociais continua em alta por parte destes grupos.

Somos Progressistas. Criado em um período em que a Internet ainda não havia se consolidado no Brasil, o Movimento Evangélico Progressista deu início a uma ampla discussão entre protestantes históricos e pentecostais. Após a trágica morte de seu idealizador, o bispo anglicano Robson Cavalcanti, o MEP entrou em um processo de decomposição. Apesar de suas limitações o MEP pode ser considerado a primeira manifestação progressista evangélica, ou há contribuições não analisadas?

Magali do Nascimento Cunha. O MEP faz parte de um processo mais recente do progressismo evangélico que começa a se desenvolver nos anos 1930 no Brasil com o movimento ecumênico, em especial com a formação da Confederação Evangélica do Brasil. Os movimentos de juventude evangélica fortalecido também pelo movimento ecumênico desde os anos 20 alcançou seu auge nos anos 50, assim como a CEB, com serviços sociais relevantes e produção de reflexões de ponta afinadas com os movimentos sociopolíticos e culturais da época. Não é à toa que durante a ditadura civil-militar os grupos evangélicos progressistas foram duramente reprimidos pelo regime, com o apoio das cúpulas das igrejas, e a CEB foi fechada. O processo de silenciamento destes grupos foi intenso e o MEP surge nos anos 1990 como uma tentativa de retomada desta memória e de reconstrução da imagem dos evangélicos para além do conservadorismo e do alinhamento com os poderes que estavam em curso.

Somos Progressistas. Em seu livro Do Púlpito às Mídias Sociais a senhora menciona o surgimento de movimentos evangélicos progressistas nas mídias sociais. Curiosamente, estes movimentos surgem após o impedimento da presidenta Dilma Rousseff e discutem temas que passam pelo fortalecimento do Estado Democrático de Direito e a proteção de minorias. Podemos considerar o feminismo e o movimento de valorização da negritude duas das principais pautas progressistas com maior penetração no meio evangélico? Além destas pautas, há outras que poderíamos mencionar aqui?

Magali do Nascimento Cunha. O feminismo e o movimento negro no universo evangélico são pautas fortes e mais recentes, mas não são as principais. A principal pauta, desde os primórdios dos movimentos evangélicos progressistas que começam a surgir nos 1930, é o combate à pobreza e a busca de justiça social. Estes temas são mobilizadores de muitos grupos progressistas Brasil a fora.

Somos Progressistas. Paralelo ao surgimento de páginas como Evangélicos Pelo Estado Democrático de Direito e Feministas Evangélicas pela Igualdade de Gênero, vemos o surgimento de igrejas alternativas que têm levado às redes sociais mensagens de tolerância e direitos humanos. Três merecem destaque: O Abrigo, com sede em Porto Alegre; a Reina (Rede Internacional de Amigos), no Rio de Janeiro e o Cult Redenção, também no Rio de Janeiro. Estamos diante de um novo fenômeno?

Magali do Nascimento Cunha. Sim, é um momento muito interessante. A intensificação do conservadorismo evangélico a partir dos anos 2010 tem provocado uma reação de grupos evangélicos que não são afinados com esta linha de pensamento e de ação. É um fenômeno interessante, pois além de revelar inconformidade de muitos grupos com os rumos hegemônicos das instituições religiosas, mostra como os espaços midiáticos socializadores como as mídias sociais podem ser ocupados com propostas religiosas que fogem aos padrões dominantes. Ainda há muito para compreendermos.

Comentários