“As diferentes classes roubam das crianças o direito de terem uma infância”, declara Clenir Xavier dos Santos


Diz um ditado popular que “as crianças são o futuro da humanidade”. Não obstante a verdade e o impacto desta declaração, milhares de crianças – e também adolescentes – são constantemente vítimas de maus tratos, privações, trabalhos forçados, abandono. Trata-se de um fenômeno global, segundo informações de entidades como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). No Brasil, casos de violência contra crianças e adolescentes são estudados a partir de dados coletados pelo Novo Mapa da Violência e pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos). Embora tenham de lidar com algumas dificuldades, ONGs e movimentos religiosos desenvolvem importantes trabalhos de conscientização sobre o direito das crianças e adolescentes, além de prestar serviços de acolhimento.

Além de dificuldades financeiras, as entidades que atuam junto à sociedade têm de lidar com problemas de ordem cultural e religiosa. É sabido que o Brasil é um país extremamente conservador, o que acaba por influenciar na forma como políticas públicas de proteção de crianças e adolescentes sejam contestadas. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são dois dos principais alvos de conservadores que defendem maior punibilidade de jovens infratores. Diz-se que os “direitos humanos protegem bandidos”, e que "o ECA contribui para o aumento da violência”. A redução da maioridade penal e um maior endurecimento do Código Penal são algumas das pautas defendidas por conservadores. Tais medidas têm sido duramente criticadas por órgãos internacionais.

O que a Bíblia tem a nos dizer sobre os direitos das crianças e dos adolescentes? De que maneira Jesus se dirigia as crianças? A sociedade judaica da época de Cristo tratava as crianças e os adolescentes de forma respeitosa? Estes são apenas três de inúmeros questionamentos sobre a forma como as Escrituras lidam com temas que a sociedade contemporânea tem cada vez mais relegado à esfera criminal, o que líderes religiosos e pedagogos contestam de forma veemente. Clenir Xavier dos Santos é uma das lideranças batistas que há anos atuam junto a comunidades evangélicas. Graduada em Psicologia e Serviço Social, Xavier dos Santos é diretora internacional do Projeto Calçada (Lifewords Brasil) e nos últimos dois anos atuou como conselheira no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e na Rede Nacional de Ação Social (Renas). Acompanhe a entrevista a seguir.

Somos Progressistas. A comunidade judaica da época de Jesus era extremamente conservadora. As crianças não tinham direitos, e sim deveres. Desde pequenas eram doutrinadas por seus pais, tinham de aprender uma profissão, viviam reclusas, e em caso de rebeldia eram duramente punidas. Ao atingir a maioridade – meninos aos 12, e meninas aos 13 anos - tornavam-se responsáveis por seus atos. De que maneira Jesus demonstra aos seus discípulos a importância do respeito aos pequeninos?

Clenir Xavier dos Santos. Inseridos numa comunidade conservadora, até mesmo os amigos e seguidores de Jesus acreditavam que lugar de criança era longe das coisas importantes. As crianças não eram levadas a sério, e não podiam perturbar com barulho, risos, perguntas infantis, espontaneidade, ou qualquer “coisa de criança”. Os amigos pensavam que estavam prestando um favor a Jesus, deixando-o em paz, longe da interferência dos “pestinhas”, como são chamados muitas vezes. Jesus decide colocar um fim nisso. Ele interrompe sua conversa com os adultos e os faz esperar. Sua atenção se volta às crianças que estão sendo colocadas de lado, sendo magoadas e frustradas. Isso já era comum para elas. Esses eram sentimentos conhecidos demais e que se acumulavam na alma. Mas Jesus se posiciona em favor das crianças e deixa clara a sua indignação em relação aos que ainda não tinham compreendido seus valores e prioridades. Para não deixar dúvida alguma, além de falar o quanto elas são importantes para ele e que ninguém deve fazer qualquer coisa que possa afastá-las de si, ainda as colocou no centro (Mateus 18:2), as abraçou e as abençoou (Marcos 10:16). Afirmou que se não mudarmos de vida e não buscarmos ser como as crianças, estaremos distantes do Reino dos Céus.

Somos Progressistas. A forma como os judeus disciplinavam seus filhos – e cujos atos eram fundamentados em textos do livro de Provérbios e do Talmude – são reproduzidos milênios depois, mesmo à revelia do que a lei entende como limite. A aprovação, no Brasil, da Lei 13.010/2014 – esta conhecida como Lei Menino Bernardo – foi duramente criticada por pais e lideres religiosos conservadores. Qual é a sua percepção da Lei e de que maneira ela vem sendo observada no Brasil?

Clenir Xavier dos Santos. Trabalho no Rio de Janeiro com crianças e adolescentes em situação de risco há 26 anos, além de dirigir o Projeto Calçada em 18 países de diferentes continentes. Através do Projeto Calçada já realizamos diversos estudos com crianças, para entender o que mais as machuca, e se isso tem diminuído no Brasil e em outros países. Em nosso mais recente estudo, em 2017, o abuso físico se apresentou mais uma vez como o trauma mais presente e marcante para elas (21%). Lamentavelmente afirmo que isso acontece mais dentro da família e pelas pessoas de maior confiança da criança e afetividade (pai-15%; mãe-11%; amigos-11%; irmãos-8%). Por isso o trauma gera dores profundas.

Existem muitos cristãos que acreditam que a forma bíblica de disciplina é com a vara, através de castigos físicos. Ficaram presos à (in)compreensões de certas regras do Antigo Testamento e esqueceram-se de ler e seguir o exemplo de Jesus Cristo. O Brasil ainda está longe de tratar as crianças com a dignidade e o respeito que elas merecem. Os pais se sentem proprietários de seus filhos e acham que ninguém deve interferir na sua forma de “educação”. Não somente ignoram a Lei Menino Bernardo, mas também o ECA (Arts. 13 e 16) e a Constituição Cidadã Brasileira (Vide Art. 227).

Fundamentam sua atitude no preceito de que também apanharam quando crianças e é por isso que as ensinam a respeitar os mais velhos. Um reducionismo de um assunto muito mais complexo. Com certeza olhar a criança com os olhos de Cristo implica ter muito mais paciência para dialogar e repetir os ensinamentos, até que a criança aprenda de fato o que precisa. Certamente que uma criança “obedece” mais e deixa de fazer algo sob ameaça do que lhe trará dor. Ela não quer jamais sentir isso de novo. Só que a criança compreende a partir da associação negativa e temor, o que não significa aprendizado. O ensino paciente e repetitivo leva a criança a refletir e tomar decisões pelo entendimento, o que a preparará para as escolhas da vida, quando a ameaça não for uma normativa.

Somos Progressistas. No mês de abril de 2017 a ministra dos Direitos Humanos, Luisilinda Valois, divulgou dados coletados a partir de denúncias feitas pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos), referentes a 2016, em que revela que crianças e adolescentes foram as que mais tiveram seus direitos violados. Por que, apesar de termos uma das legislações mais modernas no que se refere à proteção de crianças e adolescentes, casos de violência contra estas faixas etárias aparecem no topo das denúncias?

Clenir Xavier dos Santos. Através do Disque 100, um serviço de utilidade pública, mantido pela sociedade sob gestão do governo federal, as denúncias contra crianças e adolescentes em 2016 foram 57% do total (76 mil). O registro só nos primeiros quatro meses de 2016 revelou que 31% das denúncias indicavam violência sexual contra adolescentes de 12 a 14 anos. Situações de negligência, violência psicológica, física e sexual são as violações mais comuns. Isso é triste e revoltante. A denúncia anônima no Brasil tem aumentado e, por isso, estamos conseguindo visualizar um retrato com maiores traços de realidade; contudo, sabemos que ainda estamos longe de conhecer o que de fato acontece com nossas crianças e adolescentes. Muita coisa não é denunciada, por medo de retaliação, por receio de “se meter na vida alheia”, pelas consequências para a criança e os envolvidos.

A tragédia dos dados disponíveis não corresponde, infelizmente, ao tamanho real da violência sofrida, tantas vezes calada, por crianças e adolescentes em nosso país. Segundo Irina Bacci, da Ouvidora Nacional de Direitos Humanos, grande parte das denúncias indicam casos que aconteceram no ambiente familiar: os denunciados são a mãe (13%), o pai (11%), o padrasto (11%) ou um tio da vítima (5%). Das relações menos recorrentes entre o suspeito e a vítima são listados também professores, cuidadores, empregadores, líderes religiosos e outros graus de parentesco, declara Irina Bacci.

As denúncias são importante porque elas nos orientam sobre as políticas públicas de proteção, porém precisamos de mais agilidade e eficiência para captar dados e lidar com as informações.  Não adianta sabermos o que acontece se a criança não é protegida. A burocracia e a ineficiência das medidas protetivas são fatores que desestimulam a denúncia e mantém a violência velada em nosso país. Acredito que a impunidade também facilita a perpetuação da violência contra crianças e adolescentes. Precisamos interromper o ciclo de violência nos tornando responsáveis e corresponsáveis pelo bem estar de todas as crianças. Todos precisamos assumir a defesa de seus direitos sem medo ou receio.

Somos Progressistas. Em agosto de 2014 o Projeto Calçada desenvolveu um estudo com base no relato de 134 crianças e adolescentes de cinco países diferentes – Brasil, Colômbia, Índia, Quênia e Uganda – e que, segundo o depoimento dos entrevistados, os casos de violência ocorreriam dentro de suas próprias casas. É uma situação obviamente preocupante, principalmente quando sabemos que alguns adultos simplesmente ignoram o impacto decorrente de maus tratos. Fale um pouco sobre o estudo.

Clenir Xavier dos Santos. Entendemos que a violência cometida pelas pessoas de maior importância afetiva na vida das crianças, ou seja, os mais próximos, produz um impacto muito maior e negativo do que a infligida por pessoas desconhecidas ou distantes emocionalmente. Esses traumas levam as crianças e os adolescentes a interpretarem a si mesmos negativamente, o que gera baixa autoestima. Uma criança passa a achar que ela realmente não vale nada, e que é parecida com uma barata esmagada que ninguém gosta, ou uma boneca suja que é jogada de lado. Outra pensa que merece ser castigada, e nem deveria ter nascido, se vendo como um pássaro com as asas quebradas, ou uma flor murcha.

O Projeto Calçada desenvolveu uma metodologia a partir de estudos com crianças desde o ano de 1999, que as ajuda a falarem de seus traumas e a refletirem sobre si mesmas, mudando a sua percepção em relação ao que aconteceu. Contamos a elas de forma lúdica e interativa a verdade de que são especiais e valiosas, e ao se identificarem com personagens de histórias bíblicas que passaram por situações semelhantes e tiveram seus sentimentos melhorados, as crianças refletem sobre suas próprias vidas. Elas começam a compreender que apesar dos fatos ocorridos, elas não são aquilo que foram levadas a acreditar. Isso abre o caminho para que melhore a forma como se sentem e para agirem de acordo com uma autoimagem restaurada. Nos últimos 17 anos temos capacitado pessoas que trabalham diretamente com crianças e adolescentes em situação de risco, e seus familiares, que também passaram por traumas, para utilizarem essa metodologia que é conhecida como a Bolsa Verde, e os ajudarem de forma individual. Dessa forma, é mais provável quebrar esse ciclo de violência.

Somos Progressistas. No estudo conduzido em 2014 pelo Projeto constatou-se que o maior índice de violências cometidas contra crianças e adolescentes ocorreu em decorrência de abuso físico (22%), seguido por má influência dos pais ou de ambos (7%), devido ao consumo de bebida alcóolica e drogas. Um ano antes, um levantamento feito pelo O Globo constatou um significativo aumento no número de crianças e adolescentes com envolvimento com o tráfico de drogas. À que podemos atribuir o aumento?

Clenir Xavier dos Santos. Os fatores são diversos. As crianças e os adolescentes em situações de vulnerabilidade estão expostas ao tráfico de drogas o tempo todo nas comunidades em que vivem, especialmente no contexto periférico dos grandes centros urbanos. São afetados direta ou indiretamente, seja na família ou na vizinhança. Nascem e crescem em um ambiente em que o poder real e simbólico está nas mãos dos traficantes, e o envolvimento com o tráfico é quase que um destino certo. Nesses locais o Estado chega mais com a violência de seus braços armados do que com mãos amadas para prover educação de qualidade, saúde e lazer a estas populações. Conversamos com muitas crianças e adolescentes que disseram que seu sonho era se tornar traficante. Este personagem é idealizado e acaba se tornando um modelo heroico a ser seguido. As crianças são recrutadas ainda com pouca idade e sonham em galgar na “carreira”. Para isso, se fazem fiéis ao sistema em que se envolveram, até porque conhecem quais são as consequências definitivas da “infidelidade”.

Os pais, quando não são adeptos, sofrem ameaças e se tornam reféns da autoridade dos traficantes, e acabam sendo desvalorizados pelos filhos, que os acham fracos e impotentes. Para essas crianças e adolescentes, opções boas e alternativas concorrentes são escassas. O incentivo e apoio às iniciativas de programas saudáveis para esses garotos e garotas deveriam ser maiores, para que pudessem ter a chance de saírem dessa sina socialmente imposta.  Eles não deveriam ser responsáveis pelo sustento da família, quando o pai está preso, a mãe doente e o irmão é deficiente. Essa demanda que recai sobre as crianças e os adolescentes os empurra a conseguir dinheiro sem pensar nas consequências, até porque não têm o amadurecimento para avaliar amplamente os resultados de suas escolhas.

As escolas deveriam ser de qualidade. Se as oportunidades de profissionalização, musicalização e esporte fossem acessíveis, eles teriam menos chance de envolvimento com drogas e traficantes. O Estado precisa assumir sua responsabilidade constitucional. É, portanto, dever da sociedade, inclusive das igrejas, cobrar isso dos governantes, pois sem pressão essas agendas não avançam. Sem desconsiderar nosso compromisso cristão de orar por esses desafios. Outro fator que os leva a esse caminho é o vazio emocional. A pessoa que se enxerga como um “nada”, não tem capacidade para tomar uma decisão favorável. As escolhas correspondem, na maioria das vezes, à autoestima do indivíduo, e o meio das drogas é a resposta pra quem não se valoriza. Quando um amigo oferece algo desse tipo, a criança ou adolescente precisa estar fortalecida(o) emocionalmente para dizer não. Nossas crianças precisam ser valorizadas e amadas, para que sejam empoderadas a escolher bem.

O contexto econômico mais favorecido também não protege as crianças e adolescentes desse mal. Mesmo longe das situações de vulnerabilidade e do tráfico, eles chegam até as drogas ou estas chegam até elas. A expectativa que é lançada sobre elas, desde cedo, para se darem “bem na vida”, é enorme, gerando ansiedade e frustração. São colocados em muitas atividades para não perderem nenhuma chance de superação e terem vantagem sobre outros. O espaço de criação livre e maior possibilidade de relações saudáveis, quase não existe. Os que têm recursos são “vigiados” pelas babás ocupadas em seus celulares. Quando estão com os familiares, disputam atenção com os eletrônicos. As diferentes classes roubam das crianças o direito de terem uma infância. A carência de afeto e a experiência real de amor colocam as crianças suscetíveis a aceitarem o que acreditam poderá preencher esse vazio.

Somos Progressistas. Ainda com relação as drogas, especialistas ouvidos pelo O Globo apontaram o envolvimento de menores com o tráfico de drogas como um dos principais responsáveis pela entrada de crianças e adolescentes no mundo do crime. De forma geral, as consequências do aumento do poderio e abrangência do narcotráfico têm levado pesquisadores, intelectuais e políticos a proporem a legalização das drogas como um meio de enfrentamento ao tráfico. Você concorda com a ideia?

Clenir Xavier dos Santos. Não estou convencida ainda de que a legalização das drogas vai de fato enfrentar o tráfico, uma vez que imagino sempre haverá a droga mais barata circulando.  Mas é um tema que precisa ser muito debatido e analisado com profundidade. Tenho para mim que o que primeiramente leva as crianças e adolescentes ao envolvimento com o tráfico de drogas é a pobreza, a desigualdade, a injustiça social do nosso país. Uma vez envolvido, difícil evitar as infrações.

Precisamos garantir às nossas crianças e adolescentes os meios para que digam não às drogas. Isso se dá quando seus direitos são assegurados. É uma responsabilidade de todos:“ é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Art. 227 da C.F.).

Somos Progressistas. Não obstante o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13/07/1990) ter sido aprovado e sancionado na gestão do presidente Fernando Collor de Mello, o ECA é considerado um modelo de preocupação do Estado com os direitos das crianças e adolescentes. No entanto, um pequeno número de pessoas considera o ECA “um conjunto de leis que protege bandidos”. Diz-se haver uma guerra de conservadores contra os direitos humanos. Que podemos dizer a respeito?

Clenir Xavier dos Santos. Infelizmente existem aqueles que acreditam que o ECA não prevê punição suficiente às crianças e adolescentes que cometem infrações, e acham que é isso que os torna cada vez mais “delinquentes”. Isso não tem amparo na realidade. Lamento muito os posicionamentos que apoiam trancafiar adolescentes por mais tempo e mais cedo, visando ‘proteger a sociedade’ do mal chamado “adolescente”. Investe-se pouco para lhes garantir tratamento de qualidade em todas as áreas, a fim de que eles sejam os protegidos, e não estejam vulneráveis ao crime. Temos o grande defeito em nosso país de incidirmos nas consequências, e pouco na prevenção, além de geralmente culpabilizarmos as vítimas e não responsabilizarmos os perpetradores de uma sociedade excludente.

Quem pensa que seria melhor os adolescentes cumprirem medidas de privação de liberdade mais longas, desconhecem ou fecham os olhos para a realidade do sistema socioeducativo. Os adolescentes são acomodados em unidades superlotadas, às vezes com 1000% a mais do que o local poderia comportar. Por falta de agentes, ficam confinados, sem banho de sol, sem se exercitarem ou ainda estudarem, além de, muitas vezes, serem torturados e mortos. O tratamento é indigno e desrespeitoso. Não lhes é oferecido condições satisfatórias que lhes possibilite uma mudança interna. E quando saem do sistema de privação de liberdade, encontram as mesmas dificuldades em casa ou às vezes piores, porque a família não consegue se erguer diante da realidade injusta e excludente do nosso país. Esse adolescente não consegue escolha diferente e acaba por infringir novamente a lei para garantir sua sobrevivência, levando-o ao ciclo de desumanização, que pode leva-lo na vida adulta à criminalidade.

Precisamos compreender que o percentual de jovens com idade inferior a 18 anos que comete atos infracionais é de menos de 1% da população total nessa faixa etária. No universo de crimes praticados no Brasil, os delitos cometidos por adolescentes não chegam a 10%, de acordo com o Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente). A verdade é que pena aplicada, na prática, a milhares de adolescentes todos os dias já é duríssima!

Somos Progressistas. Em seu artigo “Bullying: Qual é o Papel da Igreja”, você declara que a “Igreja, mais do que qualquer segmento da sociedade, deve participar de campanhas que promovam os direitos humanos, seguindo o mandamento de Jesus para amar o próximo”. Infelizmente é justamente no universo evangélico que encontra-se uma das maiores resistências a implementação dos direitos humanos. Acredita ser possível mudar a mentalidade evangélica sobre a importância dos direitos?

Clenir Xavier dos Santos. Sim, acredito que nós Igreja podemos mudar! Creio que não podemos parar de insistir naquilo que nos foi pregado pelo próprio Cristo. O Evangelho é muitas vezes desvirtuado pelo ser humano que tem prazer e necessidade de julgar e condenar. Os legalistas são aqueles que estão também na Igreja, mas não assumem culpa nem responsabilidade. Esses legalistas afastam as pessoas do Cristo acolhedor. Eles se acham melhores do que os outros. Esses legalistas enxergam a injustiça por uma ótica distorcida, e não pela ótica do mais fraco. Cristo ama e acolhe também os legalistas, por isso, a gente ama a Igreja e persiste em trabalhar junto para que Cristo seja revelado a partir dela e apesar dela. Sobre os direitos humanos, conforme apresentados na Declaração Universal, eles foram formulados com amplo embasamento bíblico e resultam de contextos europeus tipicamente cristãos.

Somos Progressistas. O Bullying é, sem dúvida alguma, um dos grandes problemas de nossa sociedade. Pelos meios de comunicação acompanhamos casos de violência e chacinas em universidades americanas motivadas por episódios de racismo, xenofobia e Bullying. O caso de um menino de 12 anos de Iowa que sofria perseguições na escola por ter “cara de peixe”, serviu de inspiração para o documentário Bullying – O Filme - e gerado debates. Como a Igreja deve lidar com casos de Bullying?

Clenir Xavier dos Santos. Precisamos cada vez mais expor e debater esse problema. Precisamos educar todas as faixas etárias a amar, acolher e respeitar o outro. Uma sociedade como a nossa que ama o belo, incentiva e valoriza a aparência, ditando o que é bonito a partir da sua cultura, precisa ser confrontada todo o tempo. A Igreja não deveria aceitar a discriminação de nenhum tipo, e deveria agir contra ela de forma contundente. As famílias deveriam praticar o respeito dentro de casa, nas suas conversas, nas suas atitudes em relação aos seus membros e com os de fora. É assim que a gente muda uma geração.

Em 2018 lançaremos no Brasil um novo programa da Lifewords/ProjetoCalçada, chamado Escolha a Vida, com atividades lúdicas para crianças de 9 a 14 anos, que as ajudara a aprender a escolher a partir da reflexão sobre as consequências de suas decisões. Um dos cinco módulos é o Escolha os Outros, com base na parábola do Bom Samaritano. As crianças que participaram da testagem este ano trouxeram muitos exemplos de como praticavam Bullying com seus amigos e que decidiram não fazer mais, demonstrando que conseguem escolher o outro. Acredito que esse programa ajudará nossas crianças a tomarem decisões baseadas em valores bíblicos, uma vez que elas carecem de modelos coerentes.

Somos Progressistas. Outra proposta defendida por conservadores, e que igualmente encontra-se em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), do Senado, é a que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. As PECs que tramitam no Senado têm na bancada evangélica e mais especificamente no Partido Social Cristão seus principais sustentáculos. Jesus seria favorável ao encarceramento de jovens? Quais elementos – psicológicos e sociais – contradizem as PECs?

Clenir Xavier dos Santos. Sempre deveríamos fazer essa pergunta, não é? “Jesus seria favorável a isso?” A resposta nos lança para longe de tamanha barbaridade, como a de querer que nossos adolescentes passem mais tempo afastados de tudo e especialmente longe do convívio familiar e comunitário, numa estrutura precária e fora dos padrões ideais e previstos na lei. Até Deus, na época de Moisés, decidiu que as crianças e adolescentes fossem poupados quando puniu o povo: “Vocês serão mortos, e os corpos de vocês serão espalhados pelo deserto. Vocês reclamaram contra mim, e por isso nenhum de vocês que tem vinte anos de idade ou mais entrará naquela terra.” (Números 14:29).

Hoje, no sistema socioeducativo, percebemos cada vez maior isolamento, uma vez que as internações acabam tendo que ser feitas longe da região de moradia do adolescente, dificultando as visitações de familiares e da igreja local. Só isso já traz sérios comprometimentos emocionais aos adolescentes, quando se sentem abandonados, rejeitados e sozinhos. Infelizmente, o período que passam internados não é produtivo para ajuda-los a refletirem sobre suas decisões, nem para estudarem e se prepararem para terem melhores oportunidades quando saírem. Aquele tempo é perdido, e, ao contrário do que se propõe, pela forma como são tratados, desenvolvem sentimentos de raiva e rancor, mágoa profunda, que com certeza não trará bons resultados. O adolescente ainda em fase de desenvolvimento aprende naquele meio a se defender com violência também, a ficar mais esperto pra não ser pego numa próxima vez, a se aperfeiçoar na vida ilegal. Acredito que o efeito que esperam - a segurança pessoal e de sua família, está cada vez mais ameaçado, porque o Brasil está oferecendo curso intensivo de violência e criminalidade aos milhares de adolescentes “trancafiados” nas fundações casas.

O julgamento muda um pouco quando o adolescente é o filho ou o sobrinho de nossos irmãos evangélicos. Tenho ouvido pais, tios e avós que antes defendiam que lugar de “bandido é na cadeia”, agora reclamando dos maus tratos que seu adolescente está sofrendo, da dificuldade de visitar, do injusto tratamento com os meninos e meninas. A opinião muda, e o tempo prescrito já parece longo demais para os seus. Se não conseguimos responder ao que Jesus faria, será então que a pergunta a se fazer deveria ser: O que você acha que melhor ajudaria o seu filho a aprender a respeitar o próximo?

Somos Progressistas. Com atuação em diversos países, a Lifewords é mais conhecida no Brasil por meio do Projeto Calçada. Pelo o que acompanhamos das notícias e informações disponíveis no site do projeto, o Calçada tem tido uma forte presença em comunidades evangélicas tradicionais. Com quase 20 anos de atuação, o projeto tem conseguido alcançar um grande número de igrejas evangélicas?

Clenir Xavier dos Santos. Trabalhamos sempre em parceria com as organizações que trabalham com crianças e adolescentes em situação de risco, inclusive com seus familiares, jovens e adultos.  Setenta e cinco por cento dos nossos parceiros são igrejas, o que nos mostra que a Igreja permanece ativa e auxiliando o Estado a cumprir o que são constitucionalmente suas responsabilidades. Geralmente são atividades no contra turno escolar, como reforço escolar, esportes, musicalização, programas de saúde, cursos profissionalizantes etc. A parceria com o Projeto Calçada, além de oferecer capacitação e metodologia eficaz para o aconselhamento das crianças e adolescentes com 95% de melhora em sua autoestima, ajuda as igrejas a refletirem sobre importantes questões, além de mudanças de práticas.

Um dos temas muito debatidos é uma política de proteção que a Igreja deve adotar. O assunto do abuso na Igreja é delicado, mas temos visto mudança e maior abertura para a criação de estratégias de proteção e enfrentamento de todo tipo de abuso. Percebemos que aos poucos a igreja tem se tornado um lugar mais seguro para as crianças e adolescentes, mas o processo de quebrar os tabus é lento. Outro tema importante é o rompimento com a forma de evangelização tradicional. Observamos uma maior abertura para levar a criança a um encontro com Deus também de forma livre e espontânea, fora dos padrões formais e tradicionais de conversão. Quando uma criança compreende que é amada por Jesus e espontaneamente pede, por exemplo, que Ele venha ser seu amigo, ocorre uma mudança no coração da criança e que crescerá ao passo que ela continuar se relacionando com o seu novo amigo.

A oração é outro ponto importante. Temos visto aceitação e mudança na igreja quando decide praticar a oração como uma conversa com Deus, aquilo que vem do coração, sem regra, sem necessidade de fechar os olhos se não quiser, sem precisar falar palavras chaves, ou repetir as palavras de um adulto “mais crente”. Quando a criança é convidada a falar com Jesus, assim como conversa com um amigo, ela fala de forma tão espontânea que emociona qualquer um, e com certeza o coração de Deus. É por isso que Jesus nos adverte a sermos como uma criança. Uma criança não é tolhida pelos padrões sociais; ela fala o que pensa, e Deus escuta e atende. A criança então aprende que pode falar com Ele em qualquer lugar ou momento. Não precisa do tio ou da tia para falar bonito por ele (a). Assim, cresce sua relação de intimidade e confiança com a pessoa de Jesus. Entendemos que com essas e outras contribuições, temos levado a igreja a perceber o valor que a criança e o adolescente têm no reino de Deus, levando-a a inclui-los, acolhendo sua participação como agentes da missão de Jesus Cristo.
 

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