“Nos últimos dois milênios a confraria religiosa criou um cristianismo totalmente distinto de Cristo”, observa Tiago Santos


Como resultado de uma profunda reflexão teológica e social realizada em 1974, em Lausana, Suíça, o Pacto de Lausanne tornou-se para o movimento evangélico mundial o que o Concílio Vaticano II representa para o Catolicismo Romano, ou seja, uma nova forma de ver e entender a relação da Igreja com a sociedade. Desde 74 evangélicos comprometidos com a missão integral do Evangelho desenvolvem estratégias de comunicação do Evangelho, que não envolvem apenas a simples transmissão das Boas Novas, mas também o acompanhamento das necessidades e debilidades dos ouvintes. Também como resultado deste movimento de Lausanne vem surgindo – nos Estados Unidos, mas também agora no Brasil – igrejas ou cultos alternativos que têm como modelo o Pacto de Lausanne e a Igreja Primitiva. Acrescente-se a estes modelos uma visão progressista do Evangelho, de observância dos Direitos Humanos. Um dos movimentos que incorporam estes princípios é O Abrigo, uma comunidade que atua a partir de grupos de estudo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Nesta entrevista vamos conhecer um pouco sobre o coletivo Abrigo, como ele compreende a Missão Integral do Evangelho, sua análise dos primeiros anos do cristianismo, em Jerusalém, e temas correlatos. Quem nos conduz nesta jornada é o diretor executivo do Abrigo, Tiago Santos, 29 anos. Santos é natural de Porto Alegre, foi seminarista no Seminário Teológico Batista do Rio Grande do Sul (STBRS – Porto Alegre/RS), é bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST – São Leopoldo/RS), e especialista em Gestão de Pessoas pela Faculdade São Judas Tadeu (FSJT – Porto Alegre/RS). Santos também integra o fórum Cristãos Progressistas, com o qual falou por e-mail. 

Somos Progressistas. Sabemos, a partir de Atos dos Apóstolos, que os primeiros cristãos compartilhavam sua fé e rendimentos com a comunidade organizada por Jesus e seus seguidores. “Não havia, pois, entre eles, necessitado algum” (Atos 4.34/a). A Igreja era, literalmente, uma comunidade. Passados mais de dois mil anos o que mudou nesse conceito original de “comunidade”? A Igreja moderna tem mantido a orientação primitiva de justiça social, de acolhimento dos pobres?

Tiago Santos. Essa é uma das evidências históricas que podemos afirmar sem qualquer medo de errar: nos últimos dois milênios a confraria religiosa criou um cristianismo totalmente distinto de Cristo e que hoje pouco ou nada se assemelha aos ensinamentos de Jesus e a experiência de fé da Igreja primitiva; como confraria entendemos que esse seja um melhor conceito ao que hoje se diz igreja.   É por isso que o teólogo e romancista russo Leon Tolstói declara em sua inspiradora obra O Reino de Deus Está em Vós (1894) que “aquele que conhece a doutrina do Cristo, entende que é uma grande heresia aquela religião oficial a qual chamamos de cristianismo”.

A realidade é que essa é a grande crítica de homens como Nietzsche, Baruch Espinoza e tantos outros. Os Diários e Papéis, do teólogo dinamarquês Kierkegaard (1978), nos provocam a pensar que o cristianismo é a melhor maneira de você acreditar que segue a Cristo sem de fato estar o seguindo. 
Perdemos, entre outras coisas, o conceito de comunis da Igreja, em que tudo era comum a todos e a ninguém faltava nada. Hoje os cristãos, segundo o último senso do IBGE, representam 86,8% dos brasileiros, e é inacreditável conceber a ideia de que nosso país tem um número tão elevado de cristãos (o segundo país mais cristão do mundo) e consegue coexistir com injustiças como o racismo, a xenofobia, a má distribuição de renda e discriminações motivadas pelo gênero ou orientação sexual. Por isso não gosto de confundir confraria e Igreja, nem cristianismo com os ensinamentos de Cristo. São coisas distintas e é evidente que temos uma maioria que apenas é frequentadora de uma confraria religiosa e que segue ao cristianismo, não necessariamente a Cristo. É por isso que naquele dia muitos dirão: “Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome?” e ele responderá: “Nunca os conheci”. Pode parecer redundante, mas precisamos com urgência reconstruir a fé cristã com base nos ensinamentos de Cristo.

Somos Progressistas. Durante mais de três séculos a Igreja foi alvo de intensas perseguições. Transformada em religião oficial do Império Romano, de perseguida a Igreja tornou-se perseguidora. Tanto católicos quanto protestantes perseguiram, torturaram e aniquilaram adeptos de religiões pagãs. Foi com este objetivo que Jesus lançou os fundamentos da Igreja?

Tiago Santos. “Quando a educação não é libertária o sonho do oprimido é ser o opressor”, já nos alertou o saudoso Paulo Freire em sua Pedagogia do Oprimido (1974). Foi para a liberdade que Cristo nos libertou e o seu ensino é integralmente libertário. Mas, em oposição, eis que surge o cristianismo como um produto massificado e com seus mecanismos de dominação dos sujeitos, uma negação tão escandalosa da obra da cruz e do próprio Cristo que Nietzsche, em seu escrito de nome bem sugestivo, vai chamar o cristianismo de O Anticristo (1895).

O modelo que vem se erigindo desde o Império Romano restabelece o papel do sumo-sacerdote, do guru espiritual, da padronização dos crentes no modo de pensar e agir, do espaço cúltico do templo, do dia cúltico e dessas coisas todas das quais Cristo já nos libertou. Qualquer sujeito que ofereça um risco à manutenção desse status quo, ainda hoje, passa por esse processo de heretização e perseguição por parte dos religiosos e da confraria religiosa. Tem sido uma forma exitosa de silenciar a voz profética, aquela que denuncia as injustiças, especialmente as que são cometidas pelo próprio povo de Deus. Não é uma particularidade da época das Cruzadas e da Inquisição, ainda hoje muitas atrocidades são cometidas no doce nome de Cristo.

Esse discurso de colonização é glotófago, ou seja, devora as línguas e a diversidade cultural dos povos. O discurso cristão genuíno, no entanto, é pentecostal, no sentido de se exprimir em todas as línguas e culturas. Ele é libertário e incapaz de fazer o mal ao próximo, professe ele a mesma fé que nós ou não. 

Somos Progressistas. Dos quatros Evangelhos, Lucas é o que mais enfatiza a característica humanitária de Cristo. O Filho de Deus é descrito como um Messias cheio de compaixão, que estende às mãos a gentios, samaritanos, crianças, mulheres, cobradores de impostos, etc. justamente os excluídos da sociedade judaica da época. A Igreja contemporânea abandonou os princípios de Jesus?

Tiago Santos. Nós, por vezes, acreditamos que, porque distribuímos uma sopa para aqueles em situação de rua uma vez por semana, já fazemos o que é correto e suficiente. Uma das mulheres da nossa comunidade (aliás, são todas incríveis) ironiza dizendo que está tudo bem entregar uma sopa na segunda à noite ao morador de rua, desde que eu volte para o arrimo do lar e ele fique lá, na rua. Embora esse tipo de trabalho seja de suma importância, precisamos entender que não basta prestar assistencialismo aos marginalizados. O sistema continua reproduzindo miseráveis e a Igreja precisa repartir o pão, ao passo que faz oposição ao sistema que historicamente espolia a nós, pobres. Na comunidade de Cristo, e lá aonde o Reino chega, não deveria faltar amor e pão. É a utopia da Igreja. 

Gosto da concepção de C.S. Lewis sobre isso na obra O Cristianismo Puro e Simples (1952) quando diz que “o mundo é um território ocupado pelo inimigo e nesse território o rei legítimo e verdadeiro desembarcou disfarçado e convoca todos para uma grande campanha de sabotagem”.

Somos Progressistas. Em contraponto ao fanatismo e ao extremismo religioso dos fariseus, Jesus veio ao mundo com o objetivo de incluir os pobres e discriminados nos planos divinos de salvação e justiça social. Jesus apresenta-se como uma espécie de abrigo, onde as minorias encontrariam refúgio e proteção. A Igreja, com seu ritualismo e liturgia alienantes, deixou de ser um “abrigo”?

Tiago Santos. Digo mais: não só deixou de ser um abrigo, como seus templos passaram, em minha opinião, a ser símbolo de uma armadilha, de uma gaiola, que aprisiona os santos em mil programações, conferências, reuniões, ensaios e sermões dominicais, totalmente desconexos da presente realidade. Vivemos a ascensão de um discurso fascista no mundo. Discurso contra migrantes e imigrantes, em favor de armas, contra políticas públicas que diminuem as desigualdades sociais, que propagam ideias que negam direitos humanos a grupos minoritários e, contudo, a comunidade de fé vive seus dias em um desesperador silêncio, como se nada disso estivesse acontecendo.

Deixamos de ser abrigo quando não optamos por uma teologia contextual, ou seja, uma teologia que nos faz sentido e que transforma positivamente o contexto onde a comunidade de fé está inserida. Estamos ensimesmados como se não tivéssemos nada de importante a dizer para o mundo. E quando a confraria enfim se posiciona, o faz de forma reacionária, tomando partido ao lado daquele que oprime. O, sobretudo, pensador e bispo carioca Hermes C. Fernandes, de forma bem didática, qualifica essa postura incompatível da confraria religiosa como que se Moisés, ao invés de libertar o povo oprimido do Egito, se mancomunasse com Faraó para apoiar o programa de retirada de direitos dos hebreus.  O golpe de estado que vivemos hoje no Brasil revelou entre os cristãos alguns demônios, porém, por outro, lado tem despertado pessoas que compreendem que a evangelização e a justiça social não estão dissociadas. 

Somos Progressistas. Foi com este objetivo, ou seja, servir de abrigo e proteção aos pobres e excluídos que surgiu a Comunidade Abrigo? Em que ela se diferencia do atual modelo de Igreja?

Tiago Santos. A comunidade Abrigo surgiu em 2015, na mesa de um bar no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre-RS, e hoje é o nosso esforço imperfeito de sermos uma comunidade de discípulos e discípulas de Jesus, que se apresenta como um contraponto ao modelo hegemônico de comunidade de fé. Em nossa comunidade você nos ouvirá falar a respeito do apóstolo Paulo, mas também ouvirá, em nossas conversas e mensagens, o nome de Rafael Braga, o jovem do Rio de Janeiro, morador da Vila da Penha, condenado a 11 anos de prisão, acusado injustamente e levianamente, por motivos bastante refutáveis, e bem sabemos que isso só aconteceu por ele ser negro e periférico. Num final de semana você assistirá a uma aula de Teologia Sistemática e no seguinte, uma oficina sobre feminismo.

Para garantirmos que a experiência comunitária seja realmente coletiva e respeite a pluralidade do movimento, tudo o que fazemos é debatido e votado. Todas e todos têm voz, vez e voto.  Sim. É verdade que tudo acaba sendo mais lento e, por vezes, mais cansativo. No entanto isso visa promover em nossa comunidade uma maturidade, garantir que todos, mesmo os grupos minoritários entre nós, tenham seus espaços de fala respeitados e que tenhamos um senso de responsabilidade com o todo que fazemos. Isso para nós, em termos de comunidade de fé, tem sido uma experiência única e inegociável. O objetivo com isso é estabelecer uma cultura em que possamos trabalhar a ideia de sacerdócio universal e de protagonismo de cada indivíduo. 

Também por esse motivo é que criamos a ONG Coletivo Abrigo há dois anos. Basicamente, trata-se de uma pastoral que atua na área de promoção e defesa dos direitos humanos. Nesse coletivo 50% dos cargos eletivos são reservados para mulheres. Existe entre nós uma grande preocupação em promover a equidade e reparar os abusos históricos cometidos pelo cristianismo. 

Nosso grupo tem uma diversidade linda e de muitas militâncias. Ali temos anarquistas, comunistas, feministas e todo o tipo de gente. São pessoas que professam a fé em Jesus Cristo, mas que dificilmente seriam aceitas em comunidades convencionais. Inclusive a maioria está ali, justamente, porque foram rejeitadas por suas comunidades de origem. Assim como os peripatéticos ou como aqueles discípulos a caminho de Emaús, vamos aprendendo enquanto caminhamos, ao passo que, também, vamos redescobrindo a fé cristã e o conceito de Igreja, conforme damos mais um passo em direção ao Mestre Jesus.  

Somos Progressistas. Há alguns anos, nos Estados Unidos, cristãos vêm abandonando o modelo tradicional de Igreja – esse caracterizado pela existência de um templo, corpo eclesiástico e liturgias – para assumir uma forma alternativa de devoção religiosa. Há inúmeros grupos que se reúnem em academias de ginástica, bares, escritórios, etc. para estudar a Bíblia e cantar louvores. A Comunidade O Abrigo enquadra-se neste modelo norte-americano de cultos ou igrejas alternativas? Pontue.

Tiago Santos. Conhecemos muitos grupos alternativos que se reúnem em lugares pouco convencionais, mas que em sua essência continuam reproduzindo aqueles mesmos conceitos e práticas que oprimem e segregam, só que agora num espaço legal e com uma roupagem nova. Não somos contrários à instituição, ao templo e a essas coisas de pouca importância. Quem dera fossem esses os problemas do cristianismo! Acredito que não basta somente romper com o modelo convencional e reunir-se num espaço diferente, se a comunidade, no seu âmago, seguir carregando os vícios e heresias do cristianismo. É preciso fazer um resgate da Doutrina de Cristo e repensar qual é o modelo de prática de fé que essa comunidade propõe para o seu contexto social. Especialmente para aqueles que não seguem a Cristo, porque são esses a quem Jesus dispensava horas de conversas à mesa. A missão da Igreja não acontece necessariamente cruzando barreiras geográficas, mas é essencialmente um cruzamento da barreira entre a fé e a não-fé. Se a Igreja não for libertária e inclusiva, pouco importa se ela se reúne num ginásio ou numa biblioteca. Digo isso porque não conheço a realidade e a proposta desses grupos estadunidenses e acho importante enfatizar que a essência de qualquer movimento alternativo, que busque ser um contraponto, deve ir além de apenas proporcionar um espaço legal para crentes hipsters. 

Quanto ao local dos encontros, o Abrigo tem como proposta ocupar os espaços públicos da cidade de Porto Alegre e de Belo Horizonte, as duas cidades onde atuamos hoje. Queremos realmente ser uma Igreja entranhada na sociedade e que vive o contexto da cidade. Dessa forma, além de tratarmos assuntos como o direito à cidade, evitamos o desperdício de recursos ofertados à comunidade que, inevitavelmente, seriam aplicados em manutenções prediais, por exemplo, e, agora, passam a ser revertidos basicamente para realização de projetos sociais, ou seja, recursos aplicados em pessoas. Foi com o objetivo de servir as pessoas da nossa cidade que fundamos o Coletivo Abrigo.  

Somos Progressistas. Referindo-se ao Pacto de Lausanne, um teólogo que lecionava na Ásia assim se pronunciou: “A História poderá revelar ser esse Pacto a mais significativa das confissões sobre o evangelismo já produzidas pela Igreja”. A partir dessa declaração, qual a importância do Pacto de Lausanne e de que maneira ele inspirou o surgimento e atuais objetivos da Comunidade Abrigo?

Tiago Santos. O Pacto de Lausanne é um documento que sistematiza entre os evangélicos o entendimento de que o pecado não se dá somente no coração humano, mas que também aparece na forma de pecado estrutural, ou seja, nas estruturas sociais e políticas que oprimem, empobrecem, exploram e matam os sujeitos mais vulneráveis e aqueles postos à margem da sociedade.
Nossa comunidade levanta essa bandeira teológica e a compreensão de que o evangelho integral deve ser anunciado para seres humanos não fragmentados, ou seja, o ser humano visto não somente de forma espiritual, mas compreender que ele carrega consigo um aspecto bio-psico-sócio-político que precisa ser atendido com sua saúde espiritual concomitantemente.    

Somos Progressistas. O Pacto de Lausanne é enfático ao demonstrar sua confiança na inspiração, veracidade e autoridade da Bíblia. O Pacto concentra-se em três aspectos da Bíblia: sua autoridade, seu poder e sua interpretação. De igual maneira os cristãos progressistas – o que inclui o movimento feminista evangélico – também demonstra total confiança na Bíblia Sagrada. Estamos corretos?

Tiago Santos. Certamente. A mensagem de Cristo é progressista e ainda muito à frente do nosso tempo (o que pode parecer estranho para quem acha a Bíblia retrógrada). A Bíblia já há dois milênios tratava de temas como a libertação de escravos e a equidade de gênero. Paulo vai dizer em Gálatas 3.28 que não deve existir mais distinção entre homem e mulher, pois ambos são um em Cristo. Para alguns isso é revolucionário hoje, imagine ouvir essa mensagem dois mil anos atrás!

A confissão de fé da nossa comunidade é enfática em apontar que cremos na inspiração divina e na autoridade das Escrituras como um todo, mas compreendemos que sua interpretação não está livre do assalto da nossa carnalidade. Acontece que a Bíblia durante muito tempo foi interpretada somente por homens, brancos, héteros, europeus e que, logicamente, interpretaram a Bíblia a partir da sua realidade, de má fé ou por genuína convicção, mas a verdade é que essa interpretação unilateral da Bíblia foi, e ainda é, aquilo que segrega negros, mulheres, pobres, homossexuais e estrangeiros nas confrarias religiosas. O equívoco, no entanto, não está em Deus e nas Escrituras, mas nos homens que as interpretam. 

Foi dessa forma que os cristãos reformados defenderam a superioridade branca, com suas políticas de Apartheid e de segregação racial na África do Sul. E, sendo assim, fez-se necessário que os cristãos progressistas daquele país criassem a chamada Teologia Negra. O que não foi, então, uma teologia nova, mas uma leitura feita a partir dos olhos de homens e mulheres negras que, ao lerem as mesmas escrituras, viram-se tão humanos e dignos de serem chamados de filhos de Deus, quanto os seus opressores brancos. Dessa mesma forma surgem a Teologia Negra e a Teologia Feminista nos Estados Unidos, e outras que irmanam nessa perspectiva de libertação. Não são teologias que vêm negar as Escrituras, pelo contrário. Elas vêm afirmá-la na sua totalidade e contribuir com aquilo que os brancos europeus foram incapazes de enxergar em sua limitada compreensão da verdade.

Somos Progressistas. Outro ponto central no Pacto de Lausanne é o que diz respeito à responsabilidade social da Igreja. “Embora a reconciliação com o homem não seja a reconciliação com Deus, nem a ação social, evangelização, nem a libertação política, salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte de nosso dever cristão” (STOTT, John, 1983). Tem sido este o princípio norteador da Comunidade O Abrigo, esrabelecer diálogos? 

Tiago Santos. Rob Bell, um jovem teólogo estadunidense, diz que o Reino de Deus também se manifesta onde as coisas acontecem como deveriam acontecer. Isso significa que quando as pessoas são tratadas com a dignidade com a qual foram revestidas por Deus, afinal, fomos feitos todos e todas à imagem e semelhança Dele, aí está parte do Reino de Deus em ação. É importante lembrarmos a razão pela qual Deus se fez homem e entregou sua vida de forma tão humilhante e brutal. Ele o fez por amor a pessoas e não por convenções. Por isso faz todo o sentido que a Igreja, enquanto leva ao mundo a Boa Nova, também se preocupe em resgatar a dignidade humana. Se realmente queremos anunciar o Reino dos Céus precisamos nos perguntar: No Céu existe fome? No Céu existe tratamento diferenciado entre homem e mulher? No Céu existe preconceito com estrangeiros, migrantes e imigrantes? No Céu existem divisões baseadas na cor? No Céu existe exploração da força de trabalho? Então que seja feita a vontade de Deus na Terra assim como é feita no Céu.

Somos Progressistas. Há outras duas declarações impactantes no Pacto de Lausanne: a primeira afirma que o fato de a humanidade ter sido feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca, em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada; a segunda diz que a mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão, e de discriminação. É uma resposta aos cristãos que defendem a exploração dos pobres, dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, dos que insistem em discriminar alguém pela cor da pele ou classe social? 

Tiago Santos. Em seu tratado político e teológico Baruch Espinoza (1677) diz que não há nada que justifique a forma de vida de fé do cristão que aos domingos assume uma postura piedosa de religioso, mas que, no entanto, durante a semana a vida desse mesmo cristão não se distingue em nada daquela de quem ele chama de ímpio. Nada mudou de Espinoza até aqui! No domingo somos encorajados a olhar para a pessoa do lado e dizer que a amamos, mas durante a semana não há constrangimento algum, por parte de alguns cristãos, em se alegrar com linchamentos, torturas, abusos, mortes e outras atrocidades humanas. “Bandido bom é bandido morto” é quase um mantra! A confraria quando mobiliza os fiéis aos milhares é para marchas sem propósitos e boicotes às novelas da Globo em função de um beijo gay, o que mostra que ela claramente desconhece o poder de mobilização social que tem para fazer mudanças positivas na sociedade. 

Essa declaração do Pacto de Lausanne é uma síntese do que é o Evangelho e, por isso, é resposta, mas não diria que ela tenha exclusividade para esses cristãos que, evidentemente, têm feito um desserviço ao Reino de Deus. Existem cristãos que são progressistas nas prédicas, mas nas práticas usam a liberdade para viverem para si mesmos, de forma hedonista, comprometidos com suas agendas pessoais e pouco envolvidos com essa mensagem. Aquele que sabe o que é correto a se fazer e não o faz, também está pecando. Os maus estão fazendo aquilo que é próprio deles, a maldade, mas o silêncio dos bons é o que realmente perturba a minha alma, assim como perturbava a do Dr. Martin Luther King Jr. 

Enquanto alguns de nós estamos debatendo as institutas de Calvino e, ainda outros, se recuperando da ressaca da última baladinha, aqueles que têm fome e sede de justiça aguardam, não sei até quando, os cristãos cumprirem o seu papel na história. Nunca antes em nossa geração a humanidade esteve tão desacreditada e sem bons referenciais. Assim como nunca antes na história fomos tantos evangélicos e, proporcionalmente, tão poucos discípulos de Cristo. 

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